Estou desassossegado! Estou desassossegado porque não sei porquê. Levanto-me da mesa arrastando a cadeira para trás, ando cinco passos, atravesso o quarto, sonâmbulo do dia. Levanto a cabeça e olho-me ao espelho. A face amarelada, esguia com traços roliços, o bigode em trapézio por cima do lábio em reflexo no espelho (a moda! Ai a moda!).
O espelho é o reflexo invertido de nós próprios. Eu sou o reflexo invertido de mim próprio. Sou o reflexo invertido de tudo o que vejo e o que sinto.
Tenho um mundo dentro de mim e não sou nada. Se todos soubessem o que é ser eu, ser tu, ser todos os que dentro de mim são. Identidades estranhas de mim, mas também de mim parte. Sou tudo em todos e simultaneamente a inversão de tudo isso em mim. Raios!
Pouso a pena, coloco o chapéu e saio à rua. Cruzar-me com as pessoas no passeio causa-me náuseas. Olho-os como se à distância, como se invisível, mas sou também parte deles.
AlbertoÁlvaroRicardoBernardoFernando. Todos e nenhum. Libertar-me preso ao que dentro de mim impante refulge. Brasão ao peito e Alma em riste.
Recordei-me de uma frase algo singela que tenho de escrever, e acelero o passo. Questiono-me intrinsecamente se algum dia alguém a lerá? Interessará também? Acelero o passo e cruzo-me com Bernardo (terá sido Bernardo?). Como é possível alguém se cruzar numa rua despida consigo próprio?
Às vezes questiono-me se não estarei acometido de alguma loucura? O Mário estava e vejam no que deu. Estricnina, que angústia. Apalpo-me sem me tocar, e penso que não. Não estarei louco.
Acelero o passo e entro na Casa de Pasto. A Praça estava vazia. O dia estava nublado e poucas pessoas decidiram sair neste domingo. Peço papel e uma pena, e escrevo a frase. Dobro o papel e guardo-o no bolso. um dia tenho de organizar todos os meus escritos.
Peço o almoço (o meu habitual), e um copo de vinho. Como como se não fosse eu, distraidamente imerso no oceano dos meus pensamentos, no vazio da minha alma. Levanto-me, pago, e saio como se procurando algo que não sei bem o que é, mas que constantemente me foge.
Coisas estranhas atravessam-se-lhe á frente. Emerge num outro mundo que não o seu. Ingleses, alemães, uma multiplicidade de nacionalidades, pessoas quase despidas atravessam-se à sua frente, e não sabe onde está, não reconhece esta Lisboa onde toda a vida viveu. As coisas estranhas roncam, apitam, circulam rapidamente, caixotes brilhantes que inundam a rua.
As lojas são estranhas, brota música alta de dentro, musica estranha, enquanto mesas dispersas no centro da rua, nas laterais albergam pessoas quase semi-despidas que bebem e comem coisas, levantam-se, circulam, falam gritam e perde-se neste mar que desconhece.
Olha-se ao espelho de um vidro imenso de uma loja. A face amarelada, esguia com traços roliços, o bigode em trapézio por cima do lábio, o chapéu sobre a cabeça.
O espelho é o reflexo invertido de nós próprios. Eu sou o reflexo invertido de mim próprio. Sou o reflexo invertido de tudo o que vejo e o que sinto.
Fernando Pessoa em destaque em vários produtos,
bem conseguida a fórmula!
JJacinto
Muito bom. Uma grande desintegração do conceito do Livro do Desassossego, numa reinterpretação de pessoa. Parabéns.